terça-feira, 3 de outubro de 2017

“Somos todos esta nau...”


Desde a implantação do Porto Digital, Belarmino Alcoforado visita o empreendimento pela primeira vez e conta sobre as primeiras tentativas de criação de um polo de informática em Pernambuco


Celeide, esposa de Belarmino Alcoforado, fechou um pouco o vidro da janela da sala, vento forte vindo do mar. O marido estava no quarto, adaptado para passar as noites enquanto se recupera das últimas internações em hospital. Em frente à cama está montada a estação de trabalho, com vista para o estuário do Rio Paraíba, Porto de Cabedelo. Mas os olhos de Belarmino estão vidrados em outro porto mais além, o Porto Digital.


Em cima de uma banqueta, na sala, um quadro atrai a atenção pelo colorido e alegria de todos os personagens retratados. Dentro de uma caravela, os passageiros comemoram ao som de sanfona, corneta e violão, e em terra firme, as pessoas aplaudem. “Somos todos esta nau… Salve o Porto Digital!...” A iluminogravura de Romero Andrade Lima foi um presente aos homenageados nas comemorações dos 15 anos de existência do Porto Digital, um dos principais ambientes de inovações tecnológicas do Brasil, ancorado no Centro Histórico do Recife, Pernambuco. Belarmino estava entre aqueles que foram destacados como pioneiros de empresas de base tecnológica do estado. Ao seu lado, contemporâneos como Cláudio Marinho, Jarbas Vasconcelos (ex-governador), que viveram os primórdios desse empreendimento.

- Márcia, - chamou Belarmino. Isso [o Porto Digital] começou muito, muito antes.


A versão dessa história, segundo Belarmino:

Depois que o microcomputador Corisco passou pelas mãos de Belarmino e de Rildo Pragana, a estética exterior e outros componentes que completaram a obra saíram das mãos de outras empresas pernambucanas. O Corisco era um desafio, uma necessidade, uma paixão. Sílvio Calheiros, construtor de barcos em fibra de vidro, fazia as caixas do Corisco. O monitor era projetado por Fábio Maranhão Leal, da UFPE, especialista em tacômetro; na Avenida Cruz Cabugá, o Plínio Araújo, técnico em eletrônica produzia placas de dupla face que não existiam no Brasil.

O jornalista Manoel Barbosa registrou, em "História da Informática em Pernambuco", a existência de cerca de doze empresas criadas no Recife para fornecer peças e componentes para o Corisco, tecnologia made in Pernambuco.

Formamos um ciclo de produção, em 1983, 1984, e eu chamei de “Vale da Areia” - contou Belarmino. Era o vale do nada, onde não tinha nada surgiram empresas de componentes para computação. Esse pessoal inovou, buscou alternativas, contribuiu com o desenvolvimento da informática. Eu não tinha participação acionária em nenhuma empresa, mas incentivava todas. O Corisco vendeu demais, era um computador excelente. Em 1986 fez sucesso em uma feira internacional de computação, no Rio de Janeiro, junto com as empresas do Vale da Areia: Cactus Tecnologia; Promic Projetos e Assessoria Técnica; Global Eletrônica Ltda.; Alternativa Consultoria em Sistemas e Processamento de Dados; Art-Técnica (...) Arte Indústria e Comércio Ltda.; Gênesis Sistemas de Computação Ltda.; além da Corisco e da Elógica Processamento de Dados. Havia ainda a Mactronic Ltda., de George Maciel, na Abdias de Carvalho. Elas ficaram no estande chamado “Por que Pernambuco?”



coriso.IoTatu”, onde as lembranças se encontram

Belarmino montou um grupo em rede social, onde os velhos amigos se reencontraram, o “coriso.IoTatu”. Engana-se que pensa que o nome tem à ver com Internet das Coisas. Significa: I onde Tá tu?

Alberto Vinícius, que era assessor da presidência da Corisco e está no grupo, complementou a listagem de empresas do Vale da Areia:
- Mais três empresas que trabalharam para o "Vale da Areia": Engel dos saudosos Rômulo e Zenildo (vítimas da violência urbana); a Aço Móveis do professor Hélio Tolentino faziam o chassis do Corisco; e a Ponsa que fabricava as embalagens. Um ex lutador de "luta livre", que morava na 'mangueira', acho que o nome dele era Tavares, fez os primeiros moldes do "gabinete". O Vale da Areia , era o no nosso "Silicon Valley".

Joerg Storch, antigo gestor de projetos da Corisco que depois gerenciou a área de serviços de TIC da Elógica, lembrou-se ainda que a Kombi que transportava os equipamentos para feira no Rio de Janeiro, em 1986, incendiou em plena Avenida Brasil!

O colega, Alberto Vinícius, atenuou a tragédia:
- A Kombi não pegou fogo totalmente, um caminhoneiro que passava do outro lado da elevada nos socorreu e apagou as chamas. "Meu garoto" é que ficou meio atarantado e teve que ser puxado de dentro da Kombi. Os "Coriscos" salvaram-se todos. No outro dia a Kombi já estava rodando.

1993, depois do Vale da Areia, Belarmino investe em novo Centro de Tecnologia

Mercado oscilante, período de inflação galopante, planos econômicos, troca de moeda, de política de informática, o empreendimento “Corisco” sofreu intempéries e o Vale da Areia ruiu. Mas a Elógica, empresa de processamento de dados da qual Belarmino também era sócio, se reergueu. Passou a produzir terminais de pontos de venda e impressoras fiscais, além de interconectar em rede sistemas online de empresas em todo o Brasil.

A partir de 1993, no segundo governo de Jarbas Vasconcelos no Recife, Belarmino estava disposto a reestruturar um polo de tecnologia no Centro Histórico do Recife.
- Eu queria ocupar o Recife Antigo, o lugar que eu mais gostava na cidade, onde ficava a “zona”; onde eu mais farrei, estudante, comunista – confessou Belarmino. Os melhores cabarés. Nos anos 1990 dava uma tristeza andar por lá. Sujeira, abandono e marginalidade. Eu queria comprar o prédio da Western, no Recife Antigo. Estava abandonado, desmoronando. Em uma das laterais, planejava abrir uma garagem, mas o Patrimônio Histórico não permitiu. Eles não deixaram fazer nada. Mivacyr, meu sócio, insistia para que eu abandonasse a ideia, era um prédio todo adaptado para telefonia e daria um trabalho gigantesco para reformar. E eu, que sempre fui teimoso, acabei cedendo. Morreu. Desisti.

A Western Telegraph Company Limited operou no prédio, construído em 1908, de número 71 da Rua da Guia, perto do Marco Zero, até 1973. Hoje é Paço do Frevo, um museu cultural.

- Já que não deu naquele local, tentei o Matadouro Municipal de Peixinhos – continuou Belarmino. Um pedaço do prédio histórico, de mil oitocentos e setenta e poucos, estava caído. Eu queria reformar só aquela parte caída, um galpão no meio do conjunto; falei com Cláudio Marinho, ele era do Condepe [Conselho de de Desenvolvimento de Pernambuco], tentou por todos os meios sem conseguir liberação, até que precisou viajar e passar um tempo fora.

Depois de três ou quatro anos, quando ele retornou, fiz um passeio com ele no prédio da Western; tudo abandonado. Fomos ao Matadouro, o que tinha de pé, caiu de vez. Depois fomos no Centro Empresarial de Informática que construí, em Peixinhos, Olinda. Três andares, com auditório, rede em fibra óptica, agência dos Correios, toda infraestrutura pronta para acolher cerca de vinte empresas. A Elógica e o Corisco já estavam lá. O imposto municipal era 3% menor do que cobrava a cidade do Recife, sem flexibilidade de negociação, apesar das inúmeras tentativas.

Belarmino diz que o Vale da Areia ficou oculto em Peixinhos: “O mundo gira. A Lusitana roda” - falou, lembrando do slogan da empresa de mudanças… O empresário abriu o primeiro provedor de Internet de Pernambuco, o Internet Elógica; criou serviços de transmissão de dados em rede…
No ano 2000, o Porto Digital foi instalado no Bairro do Recife, com a premissa estatuária de revitalização do patrimônio histórico a fim de reacender a vivência íntegra no local – além, obviamente, das finalidades na área tecnológica. Passaram-se 15 anos sem nunca Belarmino ter ido conhecer o empreendimento, até o dia em que Francisco Saboya, diretor-presidente do Porto Digital, telefonou convidando-o para as comemorações de 15 anos.
- Fiquei emocionado.

Belarmino é um dos passageiros da nau. “Salve o Porto Digital”!


Na década de 1980, inicia movimentações em torno de um Polo de Informática no Recife

O jornalista Manoel Barbosa registra tentativas de organização de polos de informática em Pernambuco desde os anos de 1980 e 1990. No período de 1979-1982, o governador Marco Maciel compreendeu a importância da criação de um Polo de Informática em Recife e deferiu atenção ao desenvolvimento do setor em Pernambuco. O secretário de Administração, Paulo Agostinho Raposo, pretendia trazer para o estado os benefícios da Política Nacional de Informática – tempos de reserva de mercado, incentivo à indústria nacional – até então direcionada apenas para o Sul do País.

A primeira notícia tornando pública a intenção foi dada na ocasião da inauguração da sede da Sociedade dos Usuários de Computadores Eletrônicos e Equipamentos Subsidiários (Sucesu) divulgada no jornal Diario de Pernambuco de 29 de dezembro de 1979. Desde então, o secretário e Adson Carvalho, o presidente da Sucesu-PE, proclamavam a implantação do Polo de Informática no Recife aos quatro ventos, conforme é possível acompanhar pelas notícias no DP até 1984, disponíveis em acervo digital.

Em 1981 foi formada uma comissão para avaliação e planejamento do processo e o governo instalou, por decreto, um grupo de trabalho. Nos anos seguintes, os integrantes anunciavam a intenção de indústrias do Sudeste para instalarem-se em Pernambuco: Cisco, Cobra, NCR do Brasil…

Ainda em 1981 houve a formação do Centro Latino Americano de Desenvolvimento da Informática (Cladi), um centro regional cuja sede era no México. Segundo Adson Carvalho, o Cladi iria fortalecer o Polo de Informática, além de promover a pesquisa (DP 09/7/1981). Com recursos da Unesco, Subin (órgão da Secretaria de Planejamento da Presidência da República) e do governo estadual, o Cladi foi instalado em sede própria, mas a comunidade de informática não interagiu com o projeto e, gradativamente, foi desativado. Da mesma forma, o Polo de Informática, não se concretizou naquela época. Por outro lado, surgia o “Vale da Areia”.

Em plena ascensão do Vale da Areia, no segundo governo de Miguel Arraes (1987-1990) estruturou-se o Sistema Estadual de Informática e Processamento de Dados, com a missão de “implantar núcleos computacionais nos órgãos de administração direta e indireta.” O Cladi foi alterado para ser a Fundação da Empresa de Fomento de Informática do Estado de Pernambuco (Fisepe) para disseminar a cultura de informática no estado.

Longe de julgamentos de mérito, essas iniciativas, somadas à formação de cursos de computação de nível técnico, graduação e pós-graduação e à implacável Lei de Moore, tornando os computadores cada vez mais acessíveis, marcaram a forte atuação do Recife no setor de informática, atualmente.

Charge de Miguel Falcão
Durante a trajetória profissional, José Eduardo Belarmino Alcoforado assumiu inúmeros riscos. Aliás, o pessoal brincava chamando o microcomputador Corisco de “ComRisco”. O empresário atravessou dezenas de crises. Entre a pior delas, a venda do provedor de Internet Elógica, o que, tal como reconhece, o levou a desenvolver um câncer. Belarmino superou tudo, sem jamais perder a piada. E, olhos fixos no Porto Digital, assume mais um risco em sua carreira: o “Artesão Digital”. É o sangue Corisco que pulsa.